Vítima de estupro coletivo em Castelo do Piauí fala pela 1ª vez sobre o caso
Após o crime, jovem de 18 anos nunca mais saiu sozinha.
Sarah Maia em 21 de agosto de 2017
Ao falar sobre o estupro coletivo que sofreu há pouco mais de dois anos, a jovem abaixa um pouco a cabeça e desvia os olhos marejados. A boca e o queixo tremem.
“Ainda sinto muito medo, medo de tudo. Não ando mais sozinha. Meu pai me leva e me busca na faculdade todas as noites”, diz a estudante Ana (o nome é fictício), de 18 anos, que mora em Teresina (PI)
Em maio de 2015, ela e outras três amigas foram estupradas por um adulto e quatro adolescentes, apedrejadas e jogadas de um penhasco na cidade de Castelo do Piauí, a 190 km da capital.
Uma das meninas, Danielly, de 17 anos, não sobreviveu à barbárie e morreu dez dias depois em razão dos ferimentos.
Três dos quatro adolescentes estão cumprindo medidas socioeducativas. O outro foi morto após confessar o crime e entregar os demais. Preso, o maior aguarda julgamento.
De 2011 a 2016, o Piauí teve 207 casos de estupro coletivo registrados por hospitais, uma taxa de 1,43 por cem mil habitantes, a segunda mais alta do Nordeste, atrás apenas de Pernambuco (2,4).
É a primeira vez que Ana fala à imprensa sobre a violência que sofreu. Sob a condição de anonimato, ela conversou com a Folha na sala da delegada Eugênia Villa, responsável pela criação do primeiro núcleo investigativo sobre feminicídio do país.
“O estupro de Castelo do Piauí e o assassinato da Dani foram paradigmáticos. Foi uma luta conseguir enquadrar o crime como feminicídio, queriam deixá-lo como homicídio por motivo fútil, para esconder o estupro. Não tenho dúvida que foi um crime cometido por ódio e desprezo pela condição de mulher”, afirmou a delegada.
Ana conta que só soube da morte da amiga duas semanas depois, quando estava prestes a ter alta do hospital onde ficou internada 18 dias.
“Não tinha acesso a nada. Tive lapsos de memória, só vinham flashes do ‘acidente’. Um hora parecia que eu entendia o que estava acontecendo, outra hora não”.
As fotos anexadas ao inquérito policial, feitas logo após o estupro que Ana chama de “acidente”, mostram uma jovem desfigurada: rosto inchado, grandes hematomas nos olhos, lesões pelo corpo e uma tala na cabeça parcialmente raspada. Ela sofreu traumatismo craniano.
No período de internação, a estudante recebeu atendimento psicológico, contracepção de emergência e tratamento de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis, como HIV e hepatite B.
Após a recuperação física, Ana voltou a Castelo para terminar o ensino médio. “Fui recebida com flores e festa na minha escola, foi a coisa mais linda, chorei muito”.
No jantar de formatura, ela relata ter homenageado a amiga morta e agradecido aos colegas e professores pelo apoio e o silêncio em relação ao crime. “Ninguém nunca, nunca, tocou sobre o assunto comigo. Todos me ajudaram, foram solícitos”, diz, com a voz embargada.
Em Teresina, para onde se mudou no ano passado para fazer o cursinho pré-vestibular, o cenário foi diferente. Os novos colegas não sabiam que ela era uma das vítimas do estupro coletivo.
“Quando souberam que eu era de Castelo, todos queriam saber se eu conhecia as meninas [vítimas do estupro coletivo], quem eram. Eu ficava sem reação. Tinha uma amiga muito próxima que sabia de tudo e sempre me tirava daquele momento”.
AMIGAS
Ana ainda mantém contato com as duas amigas que também foram violentadas, mas diz que houve um distanciamento entre elas. A vida acabou afastando a gente. Quando estávamos juntas e falávamos sobre tudo o que tinha acontecido, as coisas ficavam muito mais difíceis.
Atualmente, a jovem namora o irmão de uma delas. “Ele é muito especial”.
A Folha tentou entrevistar as outras duas jovens, mas elas não quiseram se manifestar. Uma delas, hoje com 18 anos, mora com a madrinha, também em Teresina.
Ela sofre de esquecimentos e toma medicações para conter as crises convulsivas decorrentes do afundamento craniano que sofreu após ser jogada do penhasco. Também passou por cirurgia para reconstruir uma orelha.
Folha Press