Lagoa de São Francisco: uma cidade marcada pela pedofilia
Quatro casos foram enviados para a Justiça. Polícia investiga ao menos outros 20. Meninas dizem que eram aliciadas em rádio e em igreja evangélica
Cleiton Jarmes em 26 de junho de 2015
Lagoa de São Francisco e Castelo do Piauí são duas cidades do Sertão Norte piauiense. Municípios distantes da capital e longínquos 231 quilômetros. Provavelmente essas duas populações pouco tinham ouvido falar uma das outras até o primeiro trimestre deste ano. O Piauí provavelmente sabe muito pouco sobre Lagoa de São Francisco. Mas, se no final de maio um dos crimes mais chocantes da história do estado ocorreu em Castelo do Piauí, em junho foi a vez da pequena e pobre Lagoa de São Francisco ser assolada pelo maior escândalo de sua história. Veio a tona um esquema de acusação de pedofilia que ocorria há quase dez anos. As vítimas: crianças ligadas principalmente a uma igreja evangélica.
O esquema, segundo a Polícia Civil, consistia na ação do locutor de rádio e artista gospel Wellington Rodrigues dos Santos, 46 anos, mais conhecido por W.S., em aliciar e violentar crianças e adolescentes na cidade. “É o que chamo de Monstro da Lagoa”, resumiu o responsável pelas investigações, delegado Genival Vilela.
A polícia aponta que as entre as táticas do acusado era convidar crianças para jogos de computador, principalmente os infantis. As acusações apontam também que W.S. usava os estúdios da rádio comunitária Cidade Livre FM, no Centro de Lagoa de São Francisco, para seduzir e abusar sexualmente das garotas. A maioria das vítimas é ligada à igreja Assembleia de Deus da cidade. W.S. também era membro da instituição religiosa, chegando a ser chamado por alguns fiéis de “pastor”.
O responsável pela igreja, pastor Erivaldo Carvalho, diz que Wellington dos Santos era um simples membro.
COMUNICATIVO, ACUSADO É DENUNCIADO POR ABUSAR DE CANTORA DE 11 ANOS
W.S. é considerado muito comunicativo, um bom pregador religioso e outra de suas qualidades era o dom musical. É baixista da banda Instrumento de Jesus que tem várias crianças como membros.
Ele é acusado de também seduzir parte das crianças da banda. Uma delas era a cantora, uma menina de 11 anos, filha de um dos seus melhores amigos e também membro da igreja.
Foram supostos abusos sexuais contra essa menina que desencadearam as denúncias que levaram à prisão de W.S. e também à devassa de sua vida, tornando Lagoa do São Francisco palco do escândalo sexual.
Mas por que uma cidade de menos de 7 mil habitantes, pacata, ares interioranos, existem tantos crimes de pedofilia? Será que é por que alguns pais tiveram coragem de denunciar? Será que há alguma permissividade? Será por que as vítimas eram tão novas? Será por que o delegado que apurou o caso agiu rápido e o juiz da cidade fez o mesmo? Ou será que há medo em outros lugares de denunciar indivíduos do tipo? Quem é o acusado? Por que ele está sendo acusado? Como está a cidade depois do escândalo?
A reportagem de O Olho esteve em Lagoa do São Francisco, andou várias vezes em praticamente todas as ruas da cidade, que são poucas e sempre muito calmas, quase sempre com crianças andando para cima e para baixo. Procurou entender o que um homem “de dentro das casas” das vítimas é acusado de tantos crimes sexuais e entendeu alguns passos virtuais do acusado, que usava muito suas redes sociais para veicular imagens com crianças – algumas delas são supostas vítimas que hoje o fazem residir no sistema prisional piauiense.
Veja hoje a primeira da série de quatro reportagens sobre Lagoa de São Francisco: uma cidade marcada pela pedofilia.
Vídeo da entrada da cidade:
NÃO É O PRIMEIRO ESCÂNDALO DE PEDOFILIA EM LAGOA DE SÃO FRANCISCO
Esse não é a primeira vez que pessoas envolvidas com a rádio comunitária da cidade e a referida igreja são presas por pedofilia em Lagoa de São Francisco. Há menos de três anos os irmãos Gilberto e Edirceu foram presos (e ainda continuam encarcerados) acusados de abusar sexualmente de crianças.
Gilberto está preso acusado de violentar a própria filha.
Já Edirceu está encarcerado acusado de usar os estúdios da rádio comunitária Cidade Livre e também de aliciar fiéis da Assembleia de Deus. Crimes parecidos aos hoje imputados a W.S.
Na época Wellington dos Santos, por ser amigo de Edirceu, chegou a ser investigado, mas terminou não sendo envolvido oficialmente. Foi embora para o Distrito Federal, retornando tempos depois já evangélico da Assembleia de Deus. Na cidade e já membro da igreja fundou a banda Instrumento de Jesus. Ele era o baixista. A vocalista era uma criança de 11 anos, a menina que deu origem a toda a investigação.
COMO OCORRIAM AS VIOLÊNCIAS SEXUAIS CONTRA AS MENINAS DE LAGOA DE SÃO FRANCISCO?
Segundo o delegado Genival Vilela, que preside o inquérito policial que apura os primeiros quatro casos de acusação contra W.S., os assédios e as violências sexuais ocorriam sempre da mesma maneira, diferenciando apenas os lugares em eram praticados.
Há outro inquérito em andamento onde a vítima é uma menina de sete anos. Nesse caso a menina diz que sempre era convidada a fazer sexo oral no acusado. A garota também é filha de membros da Assembleia de Deus da cidade.
Veja o vídeo em que o delegado conta como ocorriam os abusos contra as meninas:
No caso da menina de 13 anos os abusos começaram na rádio comunitária (em prédio por trás da igreja católica matriz de Lagoa de São Francisco – hoje a rádio funciona em outro endereço). A garota teria sido convidada para conhecer os estúdios da emissora e brincar com o jogo da Barbie no computador. Ela ainda contou à polícia que os abusos começaram com alisamento nas partes íntimas partindo, tempos depois, para o ato sexual propriamente dito. Essa vítima disse que foi abusada sexualmente até janeiro deste ano e confirma que não era só na rádio mas também durante os ensaios da banda gospel em que ela é cantora e Wellington dos Santos, baixista.
A menina ainda conta que em algumas vezes dos abusos a filha de W.S., de 11 anos, estava próxima e, para não chamar atenção, era mandada embora ou para resolver alguma coisa, para que o adulto e a criança ficassem sozinhos.
Outra tática de sedução da menor era a colocação de créditos de telefone celular para que ela pudesse fazer ligações, acessar Internet e usar o aplicativo Whatsapp.
A segunda vítima era a prima da garota de 13 anos, uma garota de 14 anos. Ela contou à polícia que começou a ser abusada quando tinha 11 anos de idade. Os atos também teriam ocorrido na rádio comunitária. Desde a época que vizinhos da emissora suspeitavam que havia algo estranho com a menina pois ela era vista por várias vezes entrando e saindo sozinha da FM. Um dos fatos, relatado por uma das tias da garota, é que um dos vizinhos viu a menina ajeitando a roupa após estar sozinha com W.S. na emissora.
Exames comprovaram que as duas primas não são mais virgens e que foram vítimas de abuso sexual. Elas apontam o radialista-artista como culpado. Esses crimes geraram dois processos de estupro de vulnerável contra W.S.
A terceira vítima, também apurado em inquérito já concluído, é membro da Assembleia de Deus de Lagoa de São Francisco. Atualmente ela tem 19 anos, mas conta de que quando o fato denunciado ocorreu, tinha 16 anos. Há três anos, em um passeio da igreja ao morro do Coam, nas proximidades da cidade, ela teria sido abordada pelo acusado que teria passado mãos em suas nádegas. A adolescente disse que não teve como impedir. Por conta desse crime W.S. foi indiciado por ato libidinoso.
O quarto caso foi de uma garota que trabalhou como empregada doméstica na casa do acusado. Hoje ela tem 23 anos e relata que foi abusada sexualmente por W.S. quando tinha 13 anos. A jovem relatou que o acusado teria mostrando o órgão genital, alisando-a e teria passado a mão em seus órgãos genitais. Depois de alguns atos a então menina teria fugido da casa. Em outro encontro, tempos depois, ela relata ter sido beijada à força pelo acusado. Esse caso chegou a ser denunciado há nove anos e não foi apurado. Por conta disso W.S., depois do escândalo atual, foi indiciado pelo terceiro crime de estupro.
Por causa da repercussão midiática e também por conscientização de vários pais na cidade, o delegado que apura o caso suspeita que haja outras vítimas. Ele solicita que as vítimas denunciem o mais rápido possível para que o acusado possa, se comprovado o crime, ser punido com o encarceramento longe da sociedade e, especialmente, de crianças.
COMO FOI DESCOBERTO?
Tudo começou a ser descoberto quando uma das vítimas, menina de 13 anos, cantora do conjunto gospel da Assembleia de Deus de Lagoa de São Francisco, revelou a uma amiga de escola que estava sofrendo abusos sexuais de W.S. A amiga comunicou o fato à mãe, professora da escola, que procurou os pais da menina.
A família da vítima procurou no dia 15 de junho (uma segunda-feira) a delegacia de Pedro II (a 19 quilômetros de distância, já que em Lagoa de São Francisco não há delegacia) e denunciou o caso.
Imediatamente o delegado de Pedro II, Genivaldo Vilela, ouviu a garota. Somente em frente a autoridade policial é que ela confessou os abusos e detalhou como tudo ocorria. A garota de 13 anos contou em depoimento que começou a ser molestada quando tinha entre sete e oito anos de idade.
Uma tia da menina, que é política da cidade, já desconfiava que outra sobrinha, hoje com 14 anos, também tinha sofrido abusos de W.S. O delegado convocou a menina e ela confessou que também foi violentada.
Após o depoimento das duas primeiras meninas, imediatamente foi solicitado exame para comprovar os abusos. Em toda a região só foi encontrado na cidade de Brasileira (a 110 quilômetros de Pedro II e a 98 quilômetros de Lagoa de São Francisco) uma médica que pudesse emitir um laudo. Em ambas as meninas foram comprovados os estupros.
Com a documentação em mãos o delegado mandou intimar Wellington dos Santos que compareceu menos de 48 horas após as primeiras denúncias à Delegacia de Pedro II.
ACUSADO FOI CHAMADO PARA DEPÔR E PRESO 48 HORAS DEPOIS
O delegado Genival Vilela explica que W.S. chegou à Delegacia de Pedro II acompanhado de um advogado. Desde o início negou as acusações, inclusive dizendo que as acusações eram invenções das meninas.
O acusado prestou depoimento, foi confrontado com fatos, inclusive pelos novos que apareceram e terminou sendo liberado, já que não havia comprovações suficientes. Somente com a anexação dos exames comprovando a violência sexual nas meninas e os novos depoimentos é que houve o pedido de prisão preventiva.
Horas depois o delegado pediu junto ao juiz de Pedro II a prisão de W.S. concedido imediatamente pelo magistrado.
No mesmo dia policiais civis e militares da cidade prenderam o acusado. Ele estava na cidade e não resistiu.
“Ele continua negando. Mas há fatos contundentes que o colocam atrás das grandes ao menos pelos próximos 30 anos”, revelou o delegado, que é policial há mais de 24 anos e disse nunca ter visto um caso de acusação de abuso sexual tão grave como esse.
Wellington dos Santos foi encaminhado para a Penitenciária de Esperantina (a 128 quilômetros de Lagoa de São Francisco e a 188 quilômetros de Teresina) na tarde do último dia 23. Estava vestido com uma blusa azul que continha os dizeres “W.S. JESUS TE AMA”. Não tinha levado nada apenas uma Bíblia, dizendo que só bastava aquilo para provar que é inocente. “Ele é muito frio”, comentou o delegado.
Nem os alertas de como são tratados os acusados de abuso sexual nas penitenciárias, principalmente os contra crianças, intimidaram o acusado. “Jesus provará que sou inocente”, teria dito ao chegar na Penitenciária de Esperantina, uma das que são consideradas mais “calmas” no sistema prisional do Piauí.
A prisão ocorreu por conta de quatro crimes sexuais: três estupros de vulnerável e um ato libidinoso. Horas antes de ser encaminhado a penitenciária mais um crime contra o acusado foi denunciado: o quarto, outro estupro, contra a garota de sete anos.
Wellington dos Santos nunca respondeu a um processo na Justiça e antes disso nunca tinha sido acusado formalmente de nenhum crime.
ESPOSA DO ACUSADO GARANTE QUE MARIDO É INOCENTE
A reportagem foi até a casa de W.S., localizada na periferia da cidade, quase na zona rural. Apesar de ser simples é bem espaçosa e tem várias pinturas, algumas com a sigla W.S. e outras com temáticas bíblicas. O nome de Jesus está em vários lugares.
A esposa estava muito triste e, apesar de receptiva, falou muito pouco. Evangélica, também da Assembleia de Deus diz acreditar no marido e que ele provará a inocência. “Continuo indo à igreja”, relatou.
Depois que o marido foi preso ela ainda não o viu.
A conversa foi acompanhada, de longe, com olhares desconfiados, pela filha de 11 anos do acusado. A menina é amiga de boa parte das supostas vítimas do pai.
DELEGADO INVESTIGA AO MENOS OUTROS 20 CASOS E NÃO DESCARTA REDE DE PEDOFILIA NA REGIÃO
“O caso não pára”, é assim que informa o delegado Genival Vilela, responsável pela investigação dos crimes. Ele não descarta que haja uma rede de pedofilia na região, já que os casos anteriores e os atuais são muito parecidos, inclusive com ligações, através da rádio e da igreja evangélica entre os acusados de antes e o acusado de agora.
Vídeo em que o delegado promete não parar investigações sobre pedofilia na região:
O caso mais recente já está em apuração. É de uma garota de sete anos. A mãe e a menina são membros também da igreja e a garota, mesmo proibida de ver o acusado, saía escondido de casa. As acusações pairam que a garota fazia sexo oral em W.S. Esse caso foi denunciado por uma vizinha. Inicialmente a mãe da menina não acreditava que ela estava sendo abusada, pois achava que um membro da igreja não teria coragem de fazer aquilo.
“Não podemos revelar nomes e mais detalhes, mas outras pessoas da cidade também estão sendo investigadas, inclusive um acusado de estuprar a filha menor de 12 anos que tem Síndrome de Down, outro que abusa da filha, também menor e está tentando se desfazer dos bens para fugir e mais outros acusados. Chamaremos também para depor a filha de W.S. e a esposa. Elas podem ajudar muito a esclarecer fatos”, revelou o delegado.
O delegado pede para que as pessoas denunciem, que não tenham vergonha. “Se as pessoas não denunciarem quem vai se beneficiar é ele. As pessoas têm de se encorajar e procurar a polícia”, finalizou.
No dia que a reportagem esteve na cidade choveu cinco vezes. Um senhor ofereceu café e bolacha. Admirava a segunda chuva depois do período de “inverno”. Talvez pensando que os céus choravam por tantos horrores passados pelas meninas da cidade.
E NESTE SÁBADO a segunda parte da série de reportagens: “Igreja evangélica está abalada, afasta acusado de pedofilia, mas o perdoa”.
* Orlando Berti é jornalista. Atualmente é professor, pesquisador e extensionista do curso de Comunicação Social – Jornalismo – da UESPI – Universidade Estadual do Piauí (campus de Teresina). É mestre e doutor em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (com doutorado-sanduíche na Universidad de Málaga – Espanha). Faz Pós-doutorado em Comunicação, Região e Cidadania na Universidade Metodista de São Paulo. Atualmente desenvolve pesquisa de etnografia das redações (autorizada pelo Colegiado do Curso de Comunicação Social), tentando entender o jornalismo piauiense na prática e os fenômenos sociais contemporâneos. É vice-presidente da Rede Brasileira de Mídia Cidadã.
Fonte: O Olho