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Reportagem mostra o drama da escravidão moderna em Barras

A equipe de reportagem do jornal Espanhol El País, esteve no município e conheceu a realidade de algumas dessas vítimas do trabalho escravo.

em 15 de maio de 2017

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) condenou o Estado Brasileiro a indenizar um grupo de 128 trabalhadores, em sua maioria de Barras no Piauí, por terem sido submetidos ao trabalho escravo na Fazenda Brasil Verde, localizada em Sapucaia, sul do Pará. A indenização chega a quase 5 milhões de dólares por conivência com o trabalho escravo no local, pertencente ao Grupo Irmãos Quagliato, um dos maiores criadores de gados do Norte do país. Este foi o primeiro caso sobre escravidão e tráfico de pessoas decidido pela Corte.

A equipe de reportagem do jornal Espanhol El País, esteve no município e conheceu a realidade de algumas dessas vítimas do trabalho escravo. Como é o caso de Luis Sicinato de Menezes, 64, mais conhecido como Luis Doca. Trabalhador rural aposentado, ele está entre os 128 que levaram o processo até a corte. Em seus 30 anos como peão de trecho (o famoso bico, que quer dizer trabalho temporário), andando de fazenda em fazenda no Norte do país, ele trabalhou no corte da juquira, uma mata rasa, considerada um estorvo para a expansão da agricultura e criação de gado.

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O trabalhador vive por um código de honra: um homem sempre cumpre sua palavra e nunca foge. Demorou muito para que ele entendesse que aqueles que buscavam seus serviços não compartilhavam de seus valores. A vida de Luís Doca é marcada por aliciamentos, ameaças de morte, trabalhos em situações desumanas, frequentemente sem receber. Não foram poucas as vezes em que voltou para casa sem nada. Só com a vida. “Antes, eu não entendia. Mas aí meti na cabeça. Todos os trabalhos que fiz na vida eram trabalho escravo”, conta.

Essa realidade é seguida de perto pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), que juntamente com o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), identificou na repetição das violações na Fazenda Brasil Verde uma chance de desmascarar essa cultura que ainda persiste no Brasil. As entidades levaram dois anos levantando documentos e procurando os trabalhadores prejudicados. Muitos que sofreram as violações não puderam ser encontrados. O caso foi levado para a Comissão em 1998. O Estado Brasileiro tentou negociar e pressionou muito para que o caso não chegasse à CIDH. Não conseguiu.

Foi a ausência de efetividade na aplicação da lei para proteger os direitos dos trabalhadores, punir os responsáveis e reparar os danos, que fez com que o caso fosse aceito na CIDH em 2015. Uma vez na Corte, o Estado Brasileiro se tornou réu. Isso porque o sistema de direitos humanos foi criado para punir abusos de Estados contra seus cidadãos. Apesar da legislação internacional reconhecer que a Fazenda, mesmo sendo uma entidade jurídica, é capaz de violar os direitos humanos, ela não pode ser julgada em âmbito internacional. Está em discussão na Organização das Nações Unidas um tratado sobre empresas e direitos humanos que pode mudar esse cenário e tornar mais difícil que as empresas ficarem impunes.

Relatos de uma vida de escravo

Luis Doca fez parte da última turma resgatada, em 2000. Sua narrativa por vezes parece saída de um livro de história do século XIX. Após serem aliciados pelo “gato”, um capataz da fazenda, eles viajaram para o Pará de ônibus, apenas com a promessa do que viriam a receber. Uma vez na fazenda, os trabalhadores não têm a opção de desistir ou até mesmo abandonar o emprego, como em uma contratação regular. Assim como outros trabalhadores, Luis Doca explica em seus relatos, que para sair da fazenda é só fugindo, um ato de resistência comum à escravidão histórica. Assim como no passado, a pena pela fuga é a ameaça de tortura ou morte, explica.

Francisco das Chagas Diogo, 70, outro trabalhador que foi resgatado na Fazenda Brasil Verde, contou que a promessa do gato era que, após 15 dias na fazenda, ele voltaria para Barras levando um dinheiro para as famílias. Mas isso não aconteceu. Eles foram deixados no meio da floresta, em situação precária. O trabalho começava antes de amanhecer e ia até o cair da noite. Sem descanso, ou eram chamados de preguiçosos. Para comer um pouco melhor, tinham que matar capivaras. E para ele, fugir não era opção. “Lá tinha muito pistoleiro, o sujeito que fugisse, iria morrer. Aí, tinha que aguentar”, conta Chagas Diogo.

Dois trabalhadores não aguentaram e fugiram em busca de ajuda. Foram três dias em meio da mata até conseguir chegar a alguém que os levasse até a polícia mais perto. Eles voltaram à fazenda com os fiscais do Ministério do Trabalho. Só assim, os trabalhadores puderam escolher deixar o local. O relatório da fiscalização mostrou os detalhes de como eles viviam em situação degradante. “A gente comia nos capacetes [de construção]. Se você não tivesse um capacete tinha que esperar os outros comerem, para usar no capacete de alguém”, conta Luis Doca.

Barras, um polo de exportação de migrantes

A cidade de Barras é um conhecido polo de exportação de trabalhadores para outros Estados do país. Pouca oportunidade de emprego, aliada à baixa qualificação dos trabalhadores locais, muitos analfabetos, até hoje atrai aliciadores de fazendeiros e empreiteiros da construção, em busca de mão de obra barata. O esquema é sempre o mesmo. É o gato quem faz as promessas de quanto vai ganhar e qual o trabalho esperado. Mas Chagas Diogo afirma que alerta aos mais novos: “Hoje em dia para a pessoa sair de casa, tem que saber com quem vai sair. Saber para onde vai. Não dá para sair à toa, só com promessas.”

Na cidade, parece que todo mundo conhece alguém que desapareceu ao trabalhar de peão de trecho nas fazendas. É o caso de Dona Moça, esposa de Luis Doca. Muito ativa na busca de reparação, ela perdeu o primeiro marido e seu filho mais velho para as “fazendas”. Ela não sabe o que realmente aconteceu. Eles saíram atrás de um “gato”, com a promessa de trabalho, e nunca mais voltaram. O medo fez com que ela nunca procurasse a polícia. E ela não é um caso isolado. “Aqui é assim, a pessoa sai para trabalhar e não volta. Não sabemos onde fica a fazenda. E a gente tem até medo de ir procurar. E são muitos… muitos os que desaparecem e nunca mais voltam.”

Para Dona Moça a reparação tem uma função muito importante para os trabalhadores, a de mostrar que eles podem desafiar essa realidade e buscar justiça: “O destino dos pobres tem sido ter medo de tudo. Medo de que algo vai ser complicado, medo de denunciar, medo de estar em perigo. Isso tem que mudar”, afirma.

Custo da conivência com a escravidão

A Corte reconheceu na sentença que o Brasil violou direitos estabelecidos em vários artigos da Convenção Americana de Direitos Humanos, como a proibição da escravidão e servidão; garantia a integridade física, psíquica e moral da pessoa; e direito à liberdade pessoal.

E apesar de a dignidade humana não ter preço, a conivência do Estado com a escravização de trabalhadores em pleno regime democrático tem seu custo. A CIDH calculou um valor de reparação inédito. Cada um dos 85 trabalhadores submetidos ao trabalho escravo, que foram resgatados durante a fiscalização na fazenda em 15 de março de 2000, vão receber como reparação 40.000 dólares (cerca de 120.000 reais). Outros 43 trabalhadores resgatados durante uma fiscalização em 23 de abril de 1997 receberão 30.000 dólares (cerca de 90.000 reais). É pouco, se considerado o sofrimento e aflições que os trabalhadores passaram na condição análoga à de escravo.

“Eu tinha esperança de ganhar algo, mas era mais um sonho”, afirma Luis Doca. O trabalhador tem planos para o dinheiro. “Já matutei um bocado de coisa, tenho um terreno e quero crescê-lo, ter uma sementinha de gado. Arrumar minha casa, puxar energia para a casinha do terreno. Pagar minhas dívidas. E enquanto esses braços aqui e os da mulher tiverem forças, vamos continuar trabalhando.” Chagas Diogo também vai continuar trabalhando. Seu sonho é comprar um pedaço de terra, e deixar de ser rendeiro. “Quero garantir emprego para meus filhos”, conta.

Cidade Verde/ com informações do El País

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