Radialista é condenado à prisão por transmitir missa em rádio comunitária no Sertão do Piauí
Radialista diz que foi pego de surpresa. Ele desenvolve trabalho comunitário e voluntário. Condenação ocorreu porque emissora transmitia a missa católica
Cleiton Jarmes em 18 de outubro de 2015
Por: Orlando Berti, direto do Sertão do Piauí*
O radialista Severino Tomaz de Carvalho passa por uma das situações mais absurdas que já envolveu um comunicador e a Justiça no estado do Piauí. Ele foi condenado a dois anos de reclusão por ter transmitido missas da igreja católica de sua cidade, São Francisco de Assis do Piauí (a 500 quilômetros de Teresina), na emissora de rádio comunitária em que é diretor, a Serra FM.
Depois de quase oito anos de brigas judiciais a decisão condenatória de Severino Carvalho saiu no meio da semana. Dois anos de reclusão.
Seu crime? Transmitir as missas da igreja católica da cidade. Na época era a única instituição religiosa de São Francisco de Assis do Piauí (a cidade de menor IDH no estado e um dos cinco municípios piauienses com maior número de população rural).
O caso ocorreu em 09 de novembro de 2007. Nesse período a rádio Serra FM já era uma emissora legalizada.
Segundo sentença espedida pela Justiça Federal no Piauí Severino Carvalho cometeu crime de desenvolver atividade clandestina de telecomunicação, previsto no artigo 183, da Lei 9.472/97. A sentença, de oito páginas, foi assinada pelo juiz da 1ª Vara Federal do Piauí, Francisco Hélio Camelo Ferreira.
A decisão do magistrado foi uma provocação de uma fiscalização da Anatel – Agência Nacional de Telecomunicações.
Severino Carvalho teria sido flagrado com um link (aparelho para transmissão de som de um lugar para outro) em uma fiscalização de membros da Anatel, da Unidade Operacional sediada na capital do Piauí.
O comunicador foi multado pela Agência, alvo de inquérito na Polícia Federal, alvo de denúncias do Ministério Público Federal e condenado pela Justiça Federal pelo fato de ser o presidente da associação que mantém a rádio.
Em várias vezes Severino Carvalho foi ouvido sobre o caso. A última delas foi em uma audiência no final de agosto deste ano. Sua sentença o pegou de surpresa no meio deste mês. “Foi bem rápido, desde a última vez em que me ouviram e também porque fui condenado. Aqui a rádio só faz o bem”, reclamou.
O comunicador disse que não sabia que era crime transmitir uma missa através de um link. Esse aparelho sequer era da rádio. O link tinha sido doado pela Igreja Católica da cidade justamente para que as celebrações pudessem chegar às comunidades da zona rural, a maioria da população da cidade.
“Acontecia somente uma vez por semana. Era só uma missa por semana. O link era exclusivo para isso”, destacou o comunicador.
Na época fazer esse tipo de transmissão era crime. Atualmente não é mais. A emissora continua transmitindo a missa, mas dessa vez via cabo. São 600 metros de cabo entre a Igreja de São Francisco de Assis até a sede da Serra FM, ambas no Centro da cidade.
A Serra FM também tem programas das três únicas igrejas evangélicas da cidade. “Aqui todo mundo que procura tem espaço”, garantiu o diretor, complementado que também há programas dos dois únicos sindicatos do município: dos Servidores Públicos Municipais e dos Trabalhadores Rurais.
TRABALHO VERDADEIRAMENTE COMUNITÁRIO
A rádio Serra FM existe desde 1999. Ela é uma das primeiras rádios comunitárias do Piauí. E também foi uma das primeiras a ser legalizada. O trabalho da emissora já mereceu vários estudos acadêmicos, inclusive com a visita de pesquisadores de fora do País.
O trabalho da rádio também já foi estudado em cursos de Jornalismo do Piauí e fora do estado e também já virou trabalhos de Mestrado e Doutorado.
Severino Carvalho começou seu envolvimento na emissora como ouvinte. Contribuía com a rádio fornecendo fitas K-7. Era um morador da zona rural que se apaixonou pela rádio e foi formado pela escola de comunicação da vida.
Desde 2004 assumiu o comando da rádio e hoje cuida da emissora muito mais que sua casa (que, por sinal, fica em frente à rádio) e a sua oficina mecânica de motos, que fica a poucos metros da emissora. Ele faz trabalhos de locução e até de faxina no pequeno prédio de dois cômodos da emissora. A rádio tem mais de 20 colaboradores. E é mantida por ajuda da comunidade.
No final do ano passado a rádio ficou fora do ar porque a antena foi derrubada em um vendaval. Em poucos dias a população da cidade se juntou e arrecadou o dinheiro para a compra da nova antena.
A rádio Serra continua sendo a única emissora radiofônica a funcionar em um raio de quase 60 quilômetros.
PADRE QUE COMPROU LINK ESTÁ REVOLTADO
O padre Geraldo Gereon, líder da Fraternidade São Francisco e na época pároco da igreja em que aconteceu a transmissão, está revoltado com a condenação do radialista. “Isso é um absurdo, a justiça parece ser cega de verdade. Condenam ladrão de galinha, mas esquecem os grandes”, disse o sacerdote na noite deste sábado.
“Não há motivos para ele ser condenado. A rádio faz um trabalho comunitário. A transmissão da missa é importante para ajudar na evangelização da população”, destacou o padre Geraldo.
Segundo o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – mais de 75% da população da cidade de São Francisco de Assis do Piauí mora na zona rural. Em muitas localidades da cidade até hoje sequer há fornecimento de energia elétrica. A rádio Serra FM é o único meio de comunicação local e responsável pela emissão de avisos e interligação de parentes de outros estados com essa população.
Severino Carvalho disse que não se intimidará da condenação. Ele e amigos estão acionando advogados em Teresina e até fora do Piauí para entrarem com recursos e reverterem a situação. “A ABRAÇO (Associação Brasileira de Rádios Comunitárias) já está sabendo. Prometeram dar apoio”, destacou Severino Carvalho.
“Posso até ter errado, mas não cometi pecado. Tenho consciência de que transmitir a missa e outros programas é ajudar na construção de um mundo melhor. Melhor que tocar música que não presta, que alienar o povo”, destacou o comunicador.
Na mesma sentença a Justiça Federal reverte a pena de reclusão em serviços comunitários. Durante dois anos Severino Carvalho, caso não recorra à decisão, terá de prestar serviços a alguma instituição pública municipal ou estadual. Ele diz que já faz isso diariamente com o trabalho da rádio.
* Orlando Berti é jornalista e professor universitário. Desenvolve pesquisa de etnografia das redações (projeto da UESPI) tentando entender o jornalismo piauiense na prática e os fenômenos sociais contemporâneos.
Em pleno século XXI ainda existe coisa desse tipo. Isso é incrível!